NEM TUDO QUE RELUZ É OURO: PELO FIM DA ESCALA 6X1

Thiago Chagas Oliveira

Texto produzido para a mesa-redonda do I Seminário Formativo Maio das Trabalhadoras e dos Trabalhadores - SEFORMA realizado pelo SINDSCRATO

 

02/05/2025

 

Dizia Marx, com sua costumeira ironia, que se a aparência coincidisse com a essência, não haveria necessidade de ciência. Bastaria olhar, ver e concluir. Mas não: as coisas não são como parecem ser[1].

O capitalismo, mestre dos disfarces, é talvez o maior ilusionista da história econômica. O que se mostra como liberdade, no fundo, é coerção. O que aparece como igualdade, revela-se desigualdade. E o que parece uma troca justa – o salário – é, na realidade, o véu que encobre uma expropriação silenciosa[2]. No Brasil, o teatro da aparência ganha contornos dramáticos. Antes de tratar desse ponto, porém, cabe fazer algumas considerações preliminares.

Comecemos com um fato: vivemos numa sociedade regida pela troca de mercadorias. Adam Smith já nos avisara: não contamos com a benevolência do padeiro, mas com seu interesse. Damos dinheiro, recebemos pão. Troca de equivalentes: ninguém abre mão de sua mercadoria sem receber, em troca, outra de igual valor. O mesmo vale (ou deveria valer) para a relação entre capitalistas e trabalhadores(as), não? O(A) trabalhador(as) entrega sua força de trabalho e, em troca, recebe salário. Negócio fechado. Mãos apertadas. Tudo certo.

Mas, espere. Voltemos a Marx – e com lupa. Há uma mercadoria curiosa, quase mística, que desafia a lógica comum das trocas capitalistas: a força de trabalho. Ela tem uma particularidade que a distingue de todas as outras mercadorias — é, ao mesmo tempo, valor de uso e fonte de valor. Quando é consumida, não se esgota como o pão que comemos ou a roupa que usamos. Ao contrário: ao ser utilizada, ela cria mais valor. Sim, você leu certo. O(A) trabalhador(a), ao trabalhar, não apenas entrega o que já tem, mas cria algo que antes não existia — e que não lhe pertence.

É aqui que começa a mágica: o salário. Esse pagamento, que parece a expressão cristalina da justiça econômica, esconde um truque antigo. O que o(a) capitalista antecipa como salário nada mais é do que uma fração do valor que o(a) trabalhador(a) já produziu anteriormente. Como num teatro de sombras, a forma salário oculta completamente a divisão do tempo em que o(a) trabalhador(a) produz. Não vemos ali o tempo gasto em trabalho necessário e em mais-trabalho; não distinguimos entre o que foi pago e o que foi arrancado de graça. Tudo aparece como se tivesse sido justamente remunerado.

É uma transmutação digna dos velhos alquimistas: o salário, expressão monetária do valor de uma parte do trabalho, aparece como se fosse o pagamento do trabalho inteiro. Mas eis o segredo — e Marx o revela sem rodeios: no instante em que a força de trabalho é vendida, ela realiza seu próprio valor (ou seja, o necessário para que o trabalhador continue vivendo), mas, ao mesmo tempo, cria um valor superior a esse custo. Esse excedente é o que chamamos de mais-valor.

E o que é o mais-valor senão a diferença entre o que o(a) trabalhador(a) produz e o que ele(a) efetivamente recebe? Uma diferença que o(a) capitalista, com notável espírito prático, transforma em sua razão de existir. No final das contas, o que se chama salário é apenas a antecipação, em dinheiro, de uma parte do trabalho que o(a) próprio(a) trabalhador(a) já fez. Ele(a) paga — com o próprio suor — por sua capacidade de continuar suando. É como se o cozinheiro preparasse a refeição, entregasse ao patrão e ainda agradecesse pela gorjeta com que poderá comprar os restos do próprio prato. Assim opera o capitalismo: elegante em sua aparência, brutal em sua essência.

Feitas as ressalvas, deixemos por um momento os abismos do mais-valor em paz. Aqui, o foco é mais modesto — embora não menos revelador (e assustador). O que nos interessa agora é o mínimo. Sim, o mínimo que um(a) trabalhador(a) precisa receber para continuar sendo... trabalhador(a). Nada de lucros, nada de excedentes. Apenas o suficiente para pagar o aluguel, encher a despensa, manter-se minimamente saudável e, claro, retornar ao trabalho no dia seguinte.

A proposta, portanto, é simples: pensar o salário não como recompensa, mas como condição de reprodução. Não como prêmio pelo esforço, mas como requisito funcional da engrenagem capitalista. Dentro da própria lógica do capital — e apenas dela — o salário cumpre um papel essencial: garantir que o(a) trabalhador(a) não morra de fome antes do próximo turno.

Nada de romantismos. Aqui não se fala de justiça social, tampouco de elevação das condições de vida. A análise é crua, quase clínica: quanto custa manter um ser humano em funcionamento dentro do sistema? O salário mínimo, nesse contexto, é menos uma conquista e mais uma necessidade estrutural — como o óleo que impede uma máquina de travar.

Ficamos, assim, com a conta mais básica do capitalismo: a do que é necessário para manter a força de trabalho viva, ativa e disponível. Todo o resto — o lucro, a acumulação, a expansão — só é possível porque esse mínimo é respeitado. Não por bondade, mas por cálculo. E é justamente aí que, no Brasil, mora o detalhe mais perverso de todos. Vamos, então, aos números.

A Constituição de 1988, aquela que juramos respeitar, diz que o salário mínimo deve garantir moradia, alimentação, saúde, lazer, educação, transporte, vestuário, higiene e previdência social. O DIEESE fez as contas: para atender a esse básico, o salário mínimo deveria ser de R$ 7.398,94[3]. No entanto, o valor oficial em 2025 é de R$ 1.518,00. A diferença? R$ 5.880,94. Repito: cinco mil, oitocentos e oitenta reais. E noventa e quatro centavos.

Nota bene:  um salário de R$ 7.398,94 não é socialismo, não é comunismo, não é utopia. É o que diz a própria lógica do capitalismo constitucionalizado que temos no papel – mas não na prática, obviamente. Agora, um pequeno exercício aritmético, desses que caberiam num caderno escolar do Ensino Fundamental I: R$ 7.398,94 divididos por 31 dias resultam em R$ 238,67 por dia.

Se levarmos em conta o cálculo feito pelo DIEESE com base no que diz a Constituição de 1988, o salário mínimo atual cobre apenas 6,5 dias de trabalho. O que significa que, em um mês, o(a) trabalhador(a) só é remunerado por 6 dias e meio. O restante – 20 dias e meio, se descontarmos os domingos – ele(a) trabalha de graça. É preciso repetir e sublinhar: vinte dias e meio de graça.

Para comparar: no feudalismo europeu, o(a) servo(a) devia, em média, três dias de trabalho ao senhor feudal. Os outros dias ele(a) dedicava à sua própria subsistência. Portanto, em termos de exploração líquida, o(a) trabalhador(a) brasileiro de hoje é mais explorado que um(a) camponês(a) medieval. E isso, mais uma vez, não é panfleto ideológico. É pura e simples aritmética constitucional. O que isso revela? Que nossa sociedade não superou seu passado escravista — apenas o disfarçou. O espírito da senzala ainda ronda o chão de fábrica, o escritório, o call center, a cozinha industrial. A escala 6x1, tão naturalizada, é um resquício direto de uma lógica de exaustão, de deformação humana.

 

Conclusão?

 

O fim da escala 6x1 não é uma concessão generosa: é o primeiro passo para a construção de uma sociedade realmente democrática. A classe trabalhadora brasileira precisa mais do que tempo para dormir e produzir: precisa de tempo para viver, ou seja, estar com a família, estudar, limpar a casa, rir, chorar, descansar, ser gente.

Um país onde o trabalho vale menos do que a promessa constitucional que o sustenta não é apenas injusto — é uma farsa. E o primeiro dever de quem escreve é ajudar o(a) leitor(a) a descobrir que nem tudo que reluz é ouro.



[1] “Que em sua manifestação as coisas frequentemente se apresentem invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia política” (MARX, O Capital, livro 1).

[2] Como diz Marx em O Capital: “o escravo romano estava preso por correntes a seu proprietário, o trabalhador assalariado o está por fios invisíveis”.

[3] Mês de referência: março de 2025.

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